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Sex-ratio primária nos humanos
Trabalho elaborado por Célia Maria Ribeiro Ascenso
Curso de Antropologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Coimbra,1998
Curso de Antropologia, Faculdade de Ciências e Tecnologia, Coimbra,1998
Introdução
A sex-ratio representa a percentagem de machos em relação às fêmeas.
Há
vários conceitos de sex-ratio:
· Sex-ratio primária: é a proporção encontrada
à data da fecundação, que deve ser teóricamente igual a 1.
· Sex-ratio
secundária: é a proporção encontrada à nascença e durante o primeiro ano de
vida. Esta proporção será diferente na sex-ratio primária, pois o percurso desde
a concepção até ao nascimento pode ser interrompido devido à inviabilidade do
zigoto, feto ou qualquer que seja o estádio de desenvolvimento da nova cria.
Após o nascimento, há comportamentos diferenciados consoante a criança seja do
sexo masculino ou do sexo feminino, podendo este investimento diferencial levar
à morte da cria, quer seja esta por negligência ou intencional.
· Sex-ratio à
morte: é a proporção dos sexos nos adultos, após os 25 anos, em que se verifica
que a sex-ratio secundária nos humanos tem tendência a inverter-se, passando a
haver mais fêmeas que machos, devido à mortalidade mais precoce destes em
relação às fêmeas.
Considerações gerais
No momento da formação dos gâmetas, a sex-ratio deve ser teóricamente igual à
unidade, dado que o sexo heterogamético fornece sempre tantos gâmetas masculinos
como gâmetas femininos. Este determinismo leva-nos a duvidar que a sex-ratio
possa ser diferente da unidade. Mas na realidade a proporção dos nascimentos
varia, pois nem todos os embriões sobrevivem. Na espécie humana nascem
constantemente mais rapazes do que raparigas. A sex-ratio varia de 104,5 a
108,3, conforme as épocas e os países (Ruffié, 1987).
Darwin verificou que em
diversas espécies, sobretudo mamíferos, mahos e fêmeas eram produzidos em
números idênticos, e concluiu que isso só poderia dever-se à selecção natural, o
que conferia uma vantagem selectiva aos progenitores e não à espécie. Mas ter só
filhos, só filhas ou ambos não parecia interferir na aptidão dos progenitores, o
que o levou a concluir que machos e fêmeas eram produzidos em números iguais
para maximizar o potencial da propagação da espécie. Este argumento não explica
porque é que nas espécies poligínicas continuem a haver números idênticos de
machos e fêmeas (como é o caso do leão marinho, sendo no entanto só 4% dos
machos reponsáveis pela maioria das cópulas efectuadas). Se a razão dos sexos
servisse o bem da espécie, então os machos deveriam ser bem menos numerosos em
relação às fêmeas, porque nas espécies sexuadas cada macho pode fertilizar
várias fêmeas (Gould 1980). Esta teoria é depois reformulada por Fisher (1930 in
Alvarez, 1995), em que a selecção natural actua sobre a sex-ratio a nível
individual e não para o bem da espécie. Segundo Fisher, cada progenitor dispõe
de um certo capital biológico para investir na produção de filhos e filhas. Esse
capital biológico será investido no género que mais lucros lhes poderão trazer
pela propagação dos seus genes. Num estado de equilíbrio, a sex-ratio será de
1:1, pois cada filho custa o mesmo que criar uma filha. Mas quando o custo
associado à produção de cada sexo diverge, a sex-ratio secundária será diferente
de 1:1. Se se verificasse que um dos sexos nascia mais do que outro, os
reprodutores desse sexo sofreriam uma perda do sucesso reprodutivo, e os do sexo
oposto um ganho. Mas a selecção natural depressa reequilibraria a situação : é a
teoria da estratégia de estabilidade evolutiva.
Na realidade, esta teoria é
refutada em casos concretos. Nas populações humanas, verifica-se que a sex-ratio
secundária é muitas vezes bastante superior à média teórica esperada. A
mortalidade diferencial por sexo dos gâmetas, zigotos, fetos ou jovens enquanto
dependentes dos progenitores é um mecanismo possível para desviar o investimento
para o sexo desejado. O investimento parental é qualquer investimento por parte
do progenitor numa cria individual, que aumenta a probabilidade de sobrevivência
da cria, pelo custo da capacidade do progenitor de investir noutra cria
(Trivers, 1972). Trivers e Willard (1973) propuseram que havia correlação entre
a sex-ratio secundária e o nível sócio-económico. Para avaliar o impacto deste
efeito numa população, o valor do desvio da sex-ratio deve ser tomado em conta
ao nascimento ou a qualquer outro momento, desde a concepção até à morte, para
detectar a idade em que o investimento parental exerce o seu efeito na
sobrevivência das crias.
Será para a sex-ratio primária que nos viraremos nos
próximos pontos, sem perder de vista o seu significado dentro da resposta
estratégica do investimento parental diferencial na maximização do sucesso
reprodutivo.
Dificuldades no estudo da sex-ratio primária no homem
Não é possível, no homem, um estudo directo da sex-ratio primária, uma vez
que isso implicaria o estudo da constituição cromossómica de um grande número de
óvulos recém fertilizados. Este estudo é feito indirectamente, através da
avaliação dos abortos espontâneos que ocorrem antes do parto e do número de
nados-mortos:
· Até às 7 semanas, só a análise do cariótipo do núcleo das células nos diz
qual o sexo do embrião. Estudos sobre abortos espontâneos que identificavam o
sexo por cariótipo mostravam uma sex-ratio de 111 (Stinson, 1985). Mas a
contaminação dos tecidos do feto pelos tecidos da mãe poderia estar a camuflar
os verdadeiros valores, que se estimou poderem atingir uma sex-ratio de abortos
cromossómicamente normais de 123. Mas os abortos que ocorrem antes da oitava
semana de gravidez são muito difíceis de detectar, e por esse motivo, estes
estudos de cariótipo referem-se à sex-ratio de abortos espontâneos pelas 12
semanas.
· A partir das 12 semanas, a observação das gónadas pode ser feita
por estudo histológico.
· A partir das 20 semanas, a identificação do sexo
faz-se por observação externa dos orgãos genitais.
Este estudo é mais acentuado no segundo e terceiro trimestres, havendo muito
poucos dados para o primeiro trimestre.
Tendências da sex-ratio no segundo e terceiro trimestre de gravidez
A mortalidade pré-natal tem-se revelado superior no sexo masculino, mas
tem-se observado uma tendência secular para a descida da sex-ratio nos
nados-mortos atribuída aos cuidados obstétricos melhorados (Teitelbaum, 1971;
Ulizzi, 1983 in Sieff, 1990). Teitelbaum verificou que em alguns países esta
tendência foi acompanhada por um aumento das mortes masculinas na primeira
semana de vida. A ideia de que os machos são mais susceptíveis do que as fêmeas
aos stress ambiental é muito comum (Tanner, 1962; Cavalli-Sforza and Bodmer,
1971; Stini, 1975, 1982; McMillen 1979; Clutton-Brock, Scott, and Dickman, 1985
in Sieff, 1990). Mas estas diferenças tendem a ser suavizadas pela melhoria das
condições de vida e dos cuidados de saúde. Por este motivo encontrou-se uma
relação inversa entre o nível sócio-económico e a sex-ratio dos nados-mortos
(Neye et al, 1971).
O stress nutricional também pode contribuir para esta mortalidade
tendencialmente masculina, pré-natal e pós-natal, apesar de James (1987 in
Sieff, 1990) argumentar que os efeitos são relativamente fracos nos humanos.
Estudos com ratos dos bosques, hamsters dourados e ratos domésticos mostraram
que mães em pobres condições geram ninhadas tendencialmente femininas. Gosling
(1986 in Sieff, 1990) relatou sex-ratios de acordo com o estado nutricional da
mãe. Mães com muita gordura abortavam pequenas ninhadas com mais crias
femininas, mas não grandes ninhadas nem ninhadas com mais crias masculinas. Mães
com pouca gordura não abortavam ninhadas.
O stress social durante a gravidez pode também afectar a sex-ratio ao
nascimento. Nos primatas não humanos, as fêmeas de status mais elevado têm
tendência a atacar as de status inferior se estas são portadoras de fetos de
determinado sexo (Sackett, 1981; Silk, 1983; Small e Smith, 1984 in Sieff,
1990). Entre os macacos Ateles paniscus, as fêmeas de status elevado produzem
crias com uma sex-ratio aproximada de 100, enquanto que as fêmeas de baixo
status produzem quase inteiramente filhas. Symington (1987 in Sieff, 1990)
argumenta que a mortalidade diferencial de machos e fêmeas no útero é a causa
provável.
No entanto, não sabemos qual o comportamento da sex-ratio no
primeiro trimestre de gravidez, o que seria de grande importância conhecer, pois
estima-se que 90% dos abortos espontâneos ocorrem durante este trimestre,
desconhecendo-se por este motivo a proporção de machos e fêmeas na altura da
concepção. Para que a sex-ratio possa favorecer os machos ao nascimento, e para
que possa haver uma tão elevada mortalidade masculina no período que compreende
a concepção e o nascimento, seria necessário que houvesse uma elevada
mortalidade feminina neste primeiro trimestre, considerando a igualdade na
proporção dos sexos à concepção, ou, a manter-se no primeiro trimestre uma
tendência idêntica na mortalidade masculina à dos segundo e terceiro trimestres,
a proporção dos sexos à concepção deveria ser fortemente desviada em favor do
sexo masculino. Devemos, por esse motivo, passar aos mecanismos fisiológicos da
escolha dos sexos.
Mecanismos fisiológicos da escolha dos sexos
Como já foi considerado anteriormente, se a sex-ratio ao nascimento é
superior, não podemos deixar de considerar que os zigotos XY têm uma implantação
preferencial sobre os zigotos XX, quer seja por serem mais numerosos, quer seja
por serem mais viáveis. As razões que se prendem com esta implantação
preferencial não têm a ver com o suposto facto de haver maior quantidade de
espematozóides Y, nem da sua suposta maior mobilidade, pois estudos revelam que
a os espermatozóides masculinos e femininos apresentam mobilidades idênticas
(Benet et al., 1992), e a proporção entre estes dois tipos varia entre a
igualdade e um ligeiro excesso de espermatozóides X.
Uma hipótese para o
excesso de machos ao nascimentos é a de que os espermatozóides X ou os zigotos
XY possam ser mais sensíveis ao sistema imunitário da mãe. O sistema imunitário
desta reage à presença dos espermatozóides o dos zigotos produzindo anticorpos
que vão reagir com os antigenes do intruso (Daya e Clarck, 1992). Estudos
mostram que anticorpos como o anti-zona e o anti-esperma são reponsáveis por
limitar a capacidade de fertilização in vitro (Charnov 1982). O anticorpo
anti-zona, zona pellucida, é uma glycoproteína acelular que está em redor do
oócito durante a foliculogénese, e serve para ligar o espermatozóide no primeiro
estádio da fertilização, participa no barramento à polispermia em certas
espécies e protege e isola o embrião durante o estádio de implantação e
desenvolvimento. O anticorpo anti-esperma reduz o número dos espermatozóides
móveis na ejaculação.
Outra hipótese para explicar o excesso de machos ao
nascimento foi colocada po James (1986): As hormonas presentes no organismo
materno e no organismo paterno, tais como gonadotrofinas, estrogéneos,
progesterona e testosterona, na altura da concepção podem influênciar o sexo do
zigoto, embora haja poucas provas de como é que isto ocorre (Levin, 1987 in
Sieff, 1990). Um nível elevado de gonadotrofinas maternais na concepção
correlaciona-se com um desvio para o sexo feminino. Um nível elevado de
estrogéneos correlaciona-se com um desvio para o sexo masculino. O nível de
gonadotrofinas aumenta bruscamente na altura da ovulação, e por esse motivo
altas sex-ratios seriam esperadas como resultado da inseminação mais cedo ou
mais tardia que o pico da ovulação, pois nessa altura predominam os estrogéneos.
Os dados que mais apoiam esta hipótese provêm da análise dos valores da
sex-ratio desviada para o sexo feminino observado nos recém-nascidos concebidos
após a indução da ovulação por fornecimento de gonadotrofinas. Outras hormonas
como os estrogéneos e a testosterona podem possuir propriedades selectivas, uma
vez que foram encontradas associações entre níveis elevados destas hormonas e
uma predominância de zigotos masculinos. O período em que ocorre a fertilização
(obviamente ligada com a variação hormonal durante a ovulação) e a frequência
coital são variáveis claramente relacionadas com a sex-ratio, com uma maior
frequência coital aumentando a probabilidade do sexo do zigoto ser masculino
(Chahnazarian, 1988 in Sieff, 1990). O tabagismo é uma variável que também se
revela importante na determinação do sexo. Estudos indicam que as mulheres
fumadoras têm níveis de estrogéneo e gonadotrofinas mais baixos do que as não
fumadoras, apresentando uma sex-ratio reduzida em comparação com estas
últimas.
Mas não foi proposto nenhum mecanismo fisiológico que explique como
estas hormonas influenciam a sex-ratio.
Conclusão
Outros factores como o nível sócio-económico dos progenitores, o seu ambiente
social e psicológico, podem influenciar de modo decisivo a sex-ratio primária e
consequentemente a sex-ratio secundária. Diversos estudos indicam que baixas
condições sócio-económico baixam a sex-ratio, e boas condições sócio-económicas
aumentam o seu valor. Isto pode ser explicado na medida em que uma progenitora
em deficientes condições nutricionais ou de saúde difícilmente poderia produzir
um macho que pudesse competir contra outros machos, o que lhe baixaria o
potencial sucesso reprodutivo. Já uma fêmea não necessita competir com outras
fêmeas para poder acasalar. Então, neste caso, uma fêmea revela-se um
investimento mais seguro por forma a assegurar a propagação dos genes parentais.
Mas um maior sucesso reprodutivo por parte dos machos nascidos num nível
sócio-económico superior e das fêmeas num nível sócio-económico inferior ainda
está por provar (Clutton-Brock e Iason, 1986).
Não podemos esquecer que a
sex-ratio à nascença está íntimamente relacionada com a sex-ratio primária,
sendo uma consequência directa desta. Os mecanismos que actuam no sentido de
desviar o investimento no sentido desejado começam desde muito cedo, a partir do
momento da concepção, manipulação esta que será inconsciente mas eficaz, e que
se pode concluir dever-se às pressões selectivas do meio. Posto tudo isto, e
tendo presentes as dificuldades impostas pelo uso de um estudo indirecto, não
podemos afirmar com toda a certeza que a sex-ratio primária seja de 1:1, ou que
tenha quaisquer desvios da igualdade.
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